Aquilo que me inspira, levo para casa.




24.9.12

As conversas dos outros



No outro dia tomei o pequeno-almoço na esplanada de um café perto da minha casa. No pouco tempo em que ocupei a cadeira, enquanto sorvia a meia de leite e engolia o pão de mistura fina com queijo, deu para ouvir as conversas lançadas nas mesas do lado. Já houve tempo em que falar do tempo, dos filhos, e de outras trivialidades da vida quotidiana, ocupavam as manchetes das conversas de café. Agora os temas são outros, e sempre os mesmos. A crise, a precariedade no emprego, a falta deste. Sempre, sem tirar nem pôr, os mesmos argumentos, os mesmíssimos acontecimentos, as igualíssimas preocupações, apesar dos diferentes interlocutores. Já não há originalidade nas conversas de café quando o que nos une é um sentimento generalizado de preocupação. Os salários são debatidos à mesa, as inequidades são partilhadas enquanto se bebe a bica, o desemprego de fulano e beltrano é tema para especulações e teorias. Mudam-se os corpos e as conversas ficam. Tornámo-nos um povo de uma só conversa e abandonámos o ecletismo de temas. Tudo isto é triste e assustador. A banalização das conversas de café é um excelente indicador do estado da nação, um barómetro da saúde da sociedade. Esperemos que haja cura. 

4.9.12

Prefácio

Vivia-se o séc. XIX do milénio anterior a este, quando nasceu uma casa portuguesa. Poderia apelidá-la de simples se não se desse o caso do adjectivo genuína lhe ajustar ainda melhor. Era uma casa alta e esguia, com paredes tortas, chão de madeira gasta e despojada de quaisquer luxos. Tinha somente duas janelas, uma na cozinha, virada para o rio, que muito sofria com as cócegas provocadas pelas gaivotas que nela roçavam – a ponto de, por vezes, não se ouvir mais nada que um gargalhar incessante – e outra na sala, virada para a avenida de árvores sumptuosas que lhe davam um ar majestoso e a tornavam tão vaidosa que os vasos que a ornamentavam viam-se obrigados a estar sempre floridos. Para além das duas janelas, de uma cozinha e de uma sala, tinha quatro quartos, dois eram pequenos e os outros dois eram pequenos no superlativo absoluto. Todos sem janela, a sofrerem de uma interioridade arquitectónica que os poderia ter tornado pouco dados à simpatia não fosse o facto de quem lá pernoitava ser tão alegre que os tornou aprazíveis. Em todos eles, as paredes sofriam de hematomas provocados pelos pregos ferrugentos que sustentavam retratos kitsch de Jesus Cristo e da Virgem Maria.


A casa desta história era habitada por um casal que teve descendência suficiente para perfazer os dedos de duas mãos e ainda ter de se acrescentar dois dedos do pé. A prole que lá nasceu e cresceu foi, com o correr dos anos, saindo para espaços seus e a casa desta história, outrora amontoada de vida humana, foi-se esvaziando até somente resistirem três filhas que apenas a abandonaram quando, com cerca de 90 anos, se viram forçadas a ir para outro local, vulgarmente apelidado de paraíso, onde, segundo constava, lhes estariam reservados os melhores quartos com janela do éden.


Durante a sua (con)vivência, as três irmãs trataram de dividir a casa à sua maneira, não havendo qualquer parte desta que fosse propriedade comum, excepção feita à única torneira que por lá deitava água. Foram divididos os quartos, os armários, as prateleiras, os copos, os pratos, os tachos, os fogões, as zonas das mesas, as cadeiras, as cordas, as molas da roupa, os alguidares, os detergentes, os utensílios de limpeza, os alimentos, as plantas e tudo o mais que pudesse existir numa casa. Esta divisão, que testemunhava uma vida em comunidade sem partilha de objectos materiais, foi o ideal encontrado para uma coexistência sem sobressaltos, onde cada uma geria o que lhe pertencia, conforme podia, e sem se meter na vida alheia. Cada uma das irmãs cozinhava no seu fogão a sua própria refeição, sentava-se na sua cadeira, na sua ponta da mesa, comia na sua própria loiça que seguidamente lavava nos seus próprios alguidares. A vida de cada uma não se metia com a das outras.


Como neta de uma das três irmãs, cresci nesta casa durante a minha infância. A minha ingenuidade infantil não me permitia, na altura, aperceber devidamente da peculiaridade daquele modo de estar. Tinha perante mim a prova de que a cumplicidade entre várias pessoas pode conhecer o seu expoente máximo sem ser necessário compartilhar algo de físico. Feliz por me encontrar entre aquelas paredes (o quarto da minha avó era o maior de todos e o único com dois quadros kitsch) só a idade adulta me permitiu reconhecer que naquele lar o castiço e o genuíno se sentavam connosco à mesa.



Percebo agora que nesta casa apenas se partilhava o imaterial, o lado espiritual, aquele que não se vê mas somente se experiencia tal como o são as conversas e os risos, os jogos e as brincadeiras, os afectos e as gargalhadas, as lágrimas e os abraços, as múltiplas e inesgotáveis aprendizagens. No que diz respeito a amor, cumplicidade, respeito e felicidade aquela casa nunca foi atípica. Em tudo o resto abundam estórias e relatos que se aproximam da excentricidade mas que me fazem recordar a infância como algo pertencente a um mundo mágico que amadureceu com o crescimento mas o qual não me importava de revisitar.

3.9.12

Dos semáforos e de outras paragens

Naquele momento partilhamos os minutos de espera que antecedem a mudança do sinal. Queremos o verde que nos permita dar liberdade aos nossos ímpetos. Até lá, resta-nos encarar o vermelho enquanto balançamos o corpo ao som da música emitida pela rádio ou pela selecção de mp3 que faz parte do conteúdo de coisas que jamais largamos. Um retoque no batom, uma passa no cigarro, o ajeitar do vestido. São estes os pequenos tiques que nos distraem do compasso da espera. Não nos conhecemos mas naquele momento partilhamos o espaço. Uma via de asfalto que bifurcará adiante e que (quem sabe?) nos desviará para os destinos que são os nossos. Naquele instante vivemos, sem que disso nos apercebamos, uma cumplicidade de transeunte. Tu não reparas em mim mas eu reparo que tens as unhas pintadas de um vermelho cereja (quando tirar o verniz coral que agora tenho, vou pintar dessa cor), que tens o cabelo apanhado desordenadamente e que o cigarro te acalma da pressa que levas. Eu ligo o ar condicionado e deixo que a imaginação me guie para o que será a tua vida para além desta paragem de carro. Alguém poderá estar a fazer o mesmo comigo mas eu não reparo. Reparei em ti porque divides comigo a dianteira.
O sinal abre e tu avanças.
Eu avanço também.
Sigo em frente mas tu viras à direita.
Naquele momento deixámos de partilhar a direcção.
Em breve minutos estarei no trabalho. Já não penso sequer em ti.