Aquilo que me inspira, levo para casa.




30.10.14

Do fecho de ciclos

Embora saiba que a vida se desenrola em ciclos, a aceitação de tal facto nem sempre é feita de forma pacífica. Não são raras as vezes em que o fecho de um ciclo me deixa melancólica e a precisar de algum tempo para me recompor da inevitabilidade do momento.  Ser-se apegada a determinadas coisas, podendo ser objectos, locais, hábitos, é algo que deveria ser feito somente de forma comedida sob pena de se sentir os efeitos da privação quando o tal ciclo se conclui. Essa moderação requer aceitação e esperança no futuro e nos novos ciclos que este pode trazer. Por enquanto ainda não aprendi a encarar com leveza tudo aquilo que acaba quando para mim a continuidade parecia ser possível, mesmo nas situações em que não tenho qualquer mandato para opinar acerca da pertinência de uma continuação. E atenção que não falo aqui de amores, de amizades e de fechos de ciclos de relacionamentos interpessoais. A esses cabe um processo ainda mais complicado, mas com uma legitimidade diferente da que aqui me queixo. Falo de ver encerrar ciclos que dizem respeito a aspectos mais suaves da existência e que por isso mesmo deveriam dispensar naturalmente a hipervalorização dos mesmos. 

23.10.14

Tu, os jornais e o sofá

photo source :: Remain Simple ::

"Aprendi a conhecer-te por detrás de um jornal.  Imaginava-te o rosto, atento a devorar cada linha escrita, mas não te via para além das mãos que seguravam o papel áspero e seco. De vez em quando o jornal era afastado do teu olhar para que pudesses dividir a atenção com as imagens que passavam na televisão. Fazias um uso egoísta das muitas palavras que absorvias pois jamais as davas a partilhar. Os jornais lidos, e arrumados a um canto, serviam de conteúdo para a reciclagem mas jamais para tema de conversa. Era uma relação íntima, essa, entre ti e os jornais, uma conversa silenciosa e que te tornava um mar de informação e de actualidade. Para além dos jornais, era o sofá quem te conhecia melhor. Sempre foste fiel aos princípios mas também promoveste a fidelidade e o apego a muitos objectos.  O sofá era como uma extensão do teu corpo. Um objecto quase à tua imagem, moldado à tua maneira de ser e de estar. Se uma das propriedades dos materiais fosse a de possuírem sentimentos, o teu sofá teria hoje um manto de saudade e os jornais teriam chorado letras que se acumulariam no chão."


22.10.14

Exposed



Perdeu o estatuto de cantor de referência, mas ganhou o de fotógrafo, o que não me parece uma má troca no que à arte diz respeito. O carismático e amigo de Portugal, Bryan Adams tem uma exposição no Centro Cultural de Cascais onde às muitas das suas fotografias mais emblemáticas, se juntam agora outras produzidas a convite da Vogue e tendo como modelos algumas das mais famosas e bonitas fadistas portuguesas. 

São fotografias de pessoas, expostas ao detalhe do seu corpo físico e a deixar antever algum do detalhe que lhes cerque a sua forma de estar e a sua história de vida. As fotografias expõem corpos, coisas, espaços, comportamentos mas não denunciam intenções. Há sempre uma parte que consegue escapar ao perscrutar da objectiva e é essa invisibilidade que ao tornar as fotografias algo subjectivo, lhes confere todo o interesse.

21.10.14

No dia em que nasci






"Parece que nasci hoje. É Verão e quem me segura ao colo, nestes dias longos de um sol bonito, é uma mulher de olhos em forma de amêndoa e com cor das azeitonas que abundam no nosso olival. Sei que nasci ontem porque do mundo nada entendo além de pequenos fragmentos de som e de sabor que me chegam e me tocam aligeirando-me o choro. Recebo embalos de muitas mãos e beijos em demasia mas o colo da mulher dos olhos verde oliva é, em definitivo, o meu preferido e logo aí sinto que o será sempre.  Só recordarei este dia pelas histórias de outros e jamais pela primeira pessoa por isso inconscientemente guardo os afectos nos arrumos da memória que permanecerão sempre entreabertos. Há calor ao meu redor e isso fará com que sempre prefira o tempo quente. Os olhos da minha mãe serão sempre o meu tipo de olhos preferidos embora, por ironia, talvez a primeira da minha vida, nunca venha a apreciar o fruto que lhes confere a cor. Quanto ao resto do mundo, pouco me importa neste dia após o meu nascimento. Há uma díade que é tudo e a vinculação com os outros só começará quando permitir que o meu espaço seja corrompido pelos bons afectos de quem me quer bem. "


Escrito no dia em que fiz anos.





20.10.14

Os livros são de quem os lê, as palavras são de quem as escreve

Todos os dias folheio as páginas de um livro. Não me restam dúvidas de que as letras são os maiores catalisadores da massa cinzenta que me ocupa o cérebro. As letras impressas e todas aquelas que, mesmo não as vendo, imagino através das imagens que absorvo nas minhas fontes diárias de inspiração visual. Escreve-se bem em Portugal. No resto do mundo também, claro, mas interessa-me o país que me concebeu a mim e a todos aqueles pelos quais me envaideço cada vez que leio o que projectam nas suas narrativas. Pergunto-me como é que a mesma realidade consegue ser descrita de formas tão ímpares em que as palavras se distribuem indo ao encontro do significado perfeito. Acontece-me, por vezes, ficar presa a uma frase. Os meus olhos continuam a ler, mas a mente ficou parada na frase que me inspirou. Palavras simples que constroem ideias complexas e interessantes. Os escritores são arquitectos de frases. E basta-me ler uma para perceber se estou perante um arquitecto ou alguém que arruma frases sem saber os cálculos para a verdadeira construção.

Todos os dias leio as páginas de um livro. São milhares os caracteres que me atordoam. Admiro em demasia quem transcreve para letras aquilo que se sente no interior. Os escritores são tradutores de acções e de sentimentos. Traduzem para quem quer ler, aquilo que de outra forma não se conheceria e basta-me uma frase para perceber se estou perante um tradutor ou alguém que agarrado a banalidades descreve algo que pertence à linguagem comum.


Podia dizer tanto do bem que se escreve em Portugal. Dos poetas, artistas, filósofos, loucos, e de todas as múltiplas personalidades que cada escritor encarna para que delas possa retirar a essência para o que escreve. Não se escreve com esforço mas com uma agilidade inata, fazendo uso devido das próprias potencialidades. E eu gosto cada vez mais de absorver os conteúdos e as formas que compõem uma obra, de observar, com as ferramentas possíveis a um leitor, a capacidade de criar algo que extravasa aquilo que se conhece. Quanto mais se lê mais se percebe que um livro é um todo, uma entidade holística que encerra em si um conjunto de atributos que vão muito para além da mera história que contam. À medida que as minhas estantes se enchem, mais rica me sinto por conseguir consumir um livro sem me cingir unicamente ao que deduz pela sua sinopse, acompanhando o bailado de todas as suas partes sem perder nenhum acto, porque os escritores, para além de tudo o que já mencionei, também são coreógrafos.

14.10.14

"Her"



Preteri, até ao passado fim-de-semana a visualização do filme Her (em português “Uma história de amor”) do realizador Spike Jonze e protagonizado por Joaquin Phoenix. Já havia visto o trailer, já conhecia o argumento, imaginava que pudesse gostar mas o facto do filme retratar uma história de amor entre um personagem real e um sistema operativo, causava-me uma daquelas dissonâncias que fazem com que inconscientemente o filme fosse ficando de fora dos primeiros lugares da lista de prioridades cinematográficas. Engano meu baseado num preconceito assumidamente instalado.

Antes de falar daquilo que me comoveu e me conquistou, enquanto história de relações humanas, tenho primeiro de elogiar a realização, a fotografia e direcção de arte e a banda sonora do filme. Impecavelmente trabalhadas e esteticamente perfeitas foram encantadoras dos sentidos e manipuladoras da atenção. Ambientes imaculados, contrastantes com tumultos internos dos próprios personagens; cores vivas em momentos de apatia emocional, tudo foi pensado e concebido ao detalhe para ilustrar paradoxos que as realidades escondem. Depois, tenho de enaltecer a soberba interpretação do Joaquin Phoenix que, sem ser propriamente novidade em termos da sua qualidade de actor, assegura incontestavelmente uma das melhores interpretações do ano. A personagem que interpreta é tão real, tão legítima, tão autêntica, que todas as expressão se lhe encaixam, todos os gestos, reacções e sentimentos lhe pertencem. É impossível não gostar do Theodore que ainda por cima escreve cartas de amor como profissão, mostrando que escrever bem, com sentimentos aparentemente estruturados e com mérito reconhecido, é perfeitamente compatível com alguém pouco estável e criativo a nível emocional e relacional. Um dos muitos paradoxos que o realizador faz questão de mostrar. 


Já o filme, mais do que contar uma história de amor (como a tradução portuguesa faz deduzir), mais do que transmitir o sentido do ridículo e do improvável que reveste uma paixão que nasce entre um homem e um sistema operativo de voz feminina, transmitiu-me a noção de solidão. Para mim, o filme ilustra a solidão, a incapacidade de manter relações, de gerir emoções, de preencher a vida para além do trabalho e de um quotidiano parco. O filme não é ausente de aspectos, para mim, menos interessantes, como o não apreciar o facto do sistema operativo passar a ter sentimentos. Essa humanização da inteligência artificial é uma ideia que me desgosta não sei se por achar que insistem nela mesmo me parecendo disparatada, se por não querer aceitar que ela possa vir a existir. O que interessa é que, mesmo correndo o risco de se considerar mais plausível que essa humanização possa acontecer iludidos perante uma voz tão sensual e persuasiva como a da Scarlett Johansson, achei abusivo que algo como os afectos existissem de forma reciproca e correspondida numa relação homem-máquina. 

No entanto, sinceramente, isso pouco importa. Como o filme demonstra, e como tantas realidades dos dias de hoje o comprovam, o corpo, o espaço físico do outro, parece ter pouca importância quando a solidão se deixa amparar pela cumplicidade de algo que escuta, pelo aconchego da voz que responde, pelo estímulo gerado pelas palavras trocadas e que impelem ao toque ainda que imaginado. A solidão alimenta-se desta atenção, ainda que sem rosto, desta compreensão, ainda que ilusória, e, por isso, propicia esta espécie de alienação, de se deixar levar pelas emoções ainda que baseadas num nada, de crer em relações não sustentadas, de acreditar na perfeição de uma relação fictícia cujo futuro ditará a sua extinção.  E aquele personagem mostra tão bem as subtilezas do que é estar apaixonado, o amaciar das expressões, os olhos que se alheiam, o júbilo interior, a ternura que a atravessa. Para depois o objecto de amor ser a improbabilidade na forma de uma voz que ainda assim o compreende e o faz sentir bem, o melhor de si. E isto deixou-me triste e tive uma compaixão infinita pelo Theodore e por todas as formas de solidão que nos afastam de ver com clareza. O amor e a paixão podem e devem ser ridículos, principalmente aos olhos de terceiros, que importa isso?, mas têm de ser possíveis, e de preferência prováveis. Este é um filme que me faria pensar horas porque por detrás do que parece básico está um repertório complexo do comportamento e das emoções humanas, das relações interpessoais e dos estilos de vida actuais. É preciso vê-lo para que  as perguntas se soltem. Talvez por isso o considere, para além de um excelente filme, um ainda melhor incitador de reflexões. Recomendado para ver e pensar.

1.10.14

Sonho

Estou no meio das escadas, dos 21 degraus contados infinitas vezes. Velhas, madeira gasta, apertadas, de corrimão de ferro a oferecer um tacto áspero, a aparência é igual ao que sempre foi ou ao que a minha memória me permite assegurar que terá sido.  As caixas do correio, num metal cinzento com rebordo a vermelho, surgem em baixo do lado esquerdo de quem entra. A ocuparem a mesma área de outrora e com a mesma intensidade de desgaste. Apenas a luz das escadas está acesa. Um pormenor que distingue de tudo o que a minha lembrança me jura ter sido. 

Eu sei o que está no interior da casa do primeiro andar esquerdo mas nunca subo as últimas escadas. Vejo, prevejo, mas entre o olhar para cima, para a antecâmera da tua porta, e o olhar para baixo, para a entrada exígua, os pés estão imóveis numa quietude imutável.  E assim fico, de luz amarela sobre os ombros, agarrada ao corrimão que se sustenta numa parede caiada engelhada pelo tempo. Nunca abro a porta, nunca te chego a ver, nunca concluo se a casa está como a vivi. As escadas são o porto de abrigo, o que me protege de tudo aquilo que recordo e que antecipo, o espaço que me deixa num suspenso. E é nessa ansiedade, nessa suspensão de movimentos, de pensamentos e de anseios que acordo. E, nessa altura, volto a apagar a luz da escada.