Aquilo que me inspira, levo para casa.




24.2.15

O tempo é de todos, o significado é de cada um

photo source: Kinfolk Magazine

"The green fullness of summer is made more precious by the skeleton branches of winter. So don’t fight time and don’t fight the season. Don’t keep things from ending but celebrate them for the life they have now."

Este excerto retirado de um artigo da revista kinfolk número 8 resume uma atitude bonita perante a vida e que faz parte do legado cultural japonês. Às vezes queremos tanto que o tempo ande que pouco observamos da excelência de cada dia. Vale a pena parar para apreciar, absorver, celebrar e retirar o melhor de cada dia ainda que esse dia possa parecer banal. Quem oferece a banalidade aos dias é quem os vive e não as horas que os compõem. Essas são, por definição, inócuas. O significado que lhes damos surge da atitude certa e é essa a função que deveríamos assegurar por cada momento da vida.

13.2.15

Carnaval

::Photo credits:: pinterest

Existiam tantos fatos de Carnaval naquela casa que os móveis que os guardavam se queixavam de cansaço. A cómoda há muito que sofria de artroses, ao guarda-fatos tinha sido diagnosticada uma escoliose e o camiseiro já havia confidenciado à arca que os seus bicos de papagaio tinham começado a palrar mais forte. O que começara por ser meia dúzia de vestimentas que faziam a alegria das crianças da família, passou a ser um verdadeiro sustento e ocupação da avó Helena e rapidamente os móveis se encheram para além do seu limite. Somente na época festiva estes conheciam algum alívio ao serem despojados do seu conteúdo. Nessa altura era ver os fatos espalhados pela casa, em cordas de roupa improvisadas que, pregadas nas paredes da sala, faziam esta assoalhada parecer o centro de um desfile de moda.
            - Avozinha, posso dar o nome a este? - perguntava Marta à sua avó Helena após ter descoberto um fato de designação incógnita. 
            - Podes, mas vê lá o que é que inventas desta vez! Tens de dar um nome bonito para as freguesas gostarem!

Marta esfregava as suas mãozinhas e iniciava o ritual de baptismo da fatiota. Desta vez era um vestido de cetim branco, ornamentado com galões de cor preta e salpicados com lantejoulas de tons que oscilavam entre o dourado e o ocre. Ao olhar-se ao espelho com o vestido pela sua frente, Marta sorriu e iniciou a dança que sempre fazia para estimular a criatividade, imaginando-se vestida com aquele tecido suave. De olhos fechados e fazendo piruetas, toda a casa se tornava o palco do seu espectáculo onde, sem inibições, Marta manobrava o corpo de forma a variar os movimentos ondulantes. A avó Helena continuava a coser em frente da máquina de costura. A proximidade do Entrudo não permitia que o tempo lhe passasse a perna e era importante estar atenta a todos os pormenores da roupa. De um ano para o outro surgiam sempre bainhas descosidas, botões que caíam, adornos que desapareciam. Era preciso consertar tudo minuciosamente para que os fatos falassem com a voz do seu esplendor. Helena olhou mais uma vez para Marta, que continuava no seu cerimonial, e sorriu perante as acrobacias da neta que mais parecia um gato aos pinotes.
- Ó avó! Tu achas que este fato me fica bem?
- Está mas é quietinha que ainda o sujas. Claro que fica bem, contrasta com a tua pele morena.
- Também acho! Se calhar é com este que me vou mascarar este ano. Posso?
- Não sei, Martinha! Se nenhuma freguesa o quiser levar podes vesti-lo mas se alguma gostar dele tens de ter paciência e escolher outro.

O habitual beicinho de Marta apareceu e a avó sorriu mais uma vez perante aquela neta sempre tão diligente quanto caprichosa.

Marta adorava a casa da avó. Talvez porque essa adoração começasse logo na própria avó, que ela tanto admirava, ou talvez porque era a única casa que conhecia onde o Carnaval existia o ano inteiro e onde ela poderia ser tantas outras coisas para além de uma menina de 7 anos. A avó via naquela neta a lufada de alegria de que necessitava para não se deixar absorver demasiado nas linhas e agulhas que a toda a hora lhe ocupavam as mãos. Com aquela neta chegavam-lhe o som, a vida e a luz que ficavam fora da casa expulsas pela misantropia de quase 80 anos de vida. Desde que o marido falecera, Helena havia encontrado na sua máquina de costura a companheira de quase todas as horas do seu dia. Não tivesse nascido Marta e ela continuaria a não saber dizer se a noite virara dia ou se o dia escurecera para noite. A vida recomeçara quando aquela neta lhe entrara pela casa a exigir comida e brincadeira a troco do sorriso mais genuíno do mundo. Não sabia dizer desde quando costurava, pois parecia-lhe que responder “desde sempre” seria exagerado mas também não encontrava melhor resposta. Já os fatos sabiam dizer tudo sobre a dona das mãos que os criavam, os alinhavavam, os cosiam, os lavavam e os tratavam com especial enlevo.
- Já sei, avó!
- O quê minha filha?
- Que nome lhe hei-de dar! Não era isso que estávamos a fazer?
- Era, era, pois com certeza! Então, diz lá!
- Fantasia de neve!
- Onde é que foste desencantar esse nome, Marta?
- A lado nenhum avó, lembrei-me… só isso! Não gostas?
- Não te sei dizer, acho que…sim! Sim, gosto! Bom, pelo menos é diferente. Estava a ver que o ias chamar de fada-qualquer-coisa.
- Eu não, avó! Fadas e princesas há muitas, mas a fantasia da neve só tu é que a tens!

Marta já balançava novamente cheia de orgulho nos seus movimentos. Aqueles momentos de cumplicidade com a avó extasiavam-na. E enquanto esta procurava os óculos para enfiar a linha na agulha, já Marta se imaginava numa montanha cheia de neve qual ninfa a esvoaçar sobre um manto branco.

O dia do Entrudo aproximava-se e já a casa se transformara por completo para expor os fatos qual montra de loja de avenida principal. Os móveis vazios aplaudiam perante os fatos expostos em cordas cobertas de cabides. Havia fatos para todos os gostos: reis e rainhas; príncipes e princesas; fadas e elfos; super-heróis e palhaços; noivas do Minho e varinas; bruxas e feiticeiros; sevilhanas e chinesas; bailarinas e toureiros; cowboys e índios. A avó Helena caminhava pela casa com a boca cheia dos alfinetes que serviriam para pregar as etiquetas. Marta ajudava-a, escrevendo, nas etiquetas improvisadas, os nomes dos fatos e o preço do aluguer diário. Também fora ela que organizara os fatos por cores e tamanhos, tendo o cuidado de bem esconder o Fantasia de Neve para que dificilmente alguém o levasse.


Na véspera da sexta-feira de Carnaval a casa da avó encontrava-se repleta de fregueses à procura do fato que melhor assentasse nas crianças da família. Helena não tinha mãos a medir e a ajuda da pequena neta tornava-se fundamental para conseguir atender todos, munida da melhor atenção e simpatia. Marta revelava-se uma excelente relações-públicas e a sua espontaneidade não deixava que alguém abandonasse aquela casa sem ir totalmente satisfeito. A avó dizia que ela iria ter um trabalho na área da moda, tal era a facilidade com que indicava o fato mais apropriado para determinada pessoa. No final do dia todos os fatos tinham encontrado o corpo que trajariam nos dias de folia. Todos, excepto um. A fantasia de neve continuava elegantemente pendurada aguardando pelo momento em que seria retirada do cabide para conhecer o contacto com a pele de alguém. Helena abanou a cabeça tentando imaginar o ardil que a neta concebera para conseguir que ninguém levasse a sua fantasia preferida. Não restavam dúvidas que aquela miúda lutaria pelos seus objectivos e a avaliar pela mostra, o sucesso era algo fácil de se lhe agarrar à mão.

10.2.15

Saber apreciar é saber viver


Fazer uma apreciação positiva da nossa vida nem sempre é fácil e não digo isto achando que todos temos vidas repletas de desgraças e de infortúnios que nos amputam na capacidade de apreciá-la. Digo isto porque sei da incapacidade generalizada em saber reconhecer que uma vida boa não tem de ser uma vida perfeita. Numa vida boa, há acontecimentos bons e maus, há emoções negativas e positivas acompanhadas de pensamentos em igual registo. Há corpos tensos, mãos suadas, caras inflamadas mas também há mãos arranjadas, corpos em indolência e olhos que admiram. Há espaço para tudo e há espaço para que esse tudo possa ser armazenado e devidamente inventariado, com a imparcialidade necessária para não influenciar o julgamento.  

Bem, mas esta conversa não surge do acaso, a sua origem encontra-se ligada a um exercício de desenvolvimento pessoal que tive de fazer e que consistia exactamente na apreciação positiva da minha vida. Focar-me nas soluções e não nos problemas, focar-me naquilo que aprendi, naquilo que melhor recolhi para me influenciar enquanto pessoa, focar-me nas pessoas que foram mais importante e, nunca deixando de lado os momentos menos bons, saber retirar destes os ensinamentos que nos fortalecem e que nos ensinam a continuar a viver e a continuar a saber apreciar a vida.

Não, não sou nada espiritual, não sou dada a esoterismos nem sequer acredito no poder do universo ou nas conspirações que este possa fazer a nosso favor. Apesar de emotiva, sou uma mulher da lógica, da ciência, dos experimentos, dos factos provados mas acredito muito no ser humano e nas suas infinitas capacidades para se desenvolver, para crescer, para florescer, para encontrar a felicidade que tanto procura mas que tão pouco faz para a encontrar. Querer ser feliz, estando parado e numa atitude de lamento será porventura muito mais difícil, Pode acontecer, porque a felicidade é tão subjectiva que se pode esconder nas mais estranhas condições. Contudo, não será com certeza a forma mais provável de a obter e muito menos a mais sustentável. Porque ser feliz e ter uma vida boa requer acção, esforço, atitude, proactividade, empenho, compromisso e significado. E, convenhamos que tudo isto custa, ainda para mais porque para que a máquina funcione precisamos dos outros, das nossas relações sociais, dos nossos grupos de pertença, dos familiares, amigos, colegas, dos nossos buddies. Há um sem número de atributos que fazem com que a vida valha a pena ser vivida mas muitos deles são subjectivos e estão na nossa capacidade de os chamar a nós e  reconhecê-los como os nossos atributos da felicidade.

Voltando ao meu exercício, também eu experimentei a dificuldade em conseguir apreciar positivamente todos os momentos da minha vida. Alguns sei que são impossíveis de o conseguir mas, não só dei especial crédito aos restantes (aqueles que eu sei que efectivamente me fizeram feliz) como retirei os ensinamentos possíveis da minha vulnerabilidade. 

Teria muito mais para dizer (talvez o vá fazendo em outros posts) mas neste tenho ainda para mostrar os meus lifeboards, os meus destaques de uma vida e que deram origem a quatro composições fantásticas, cheias de cor, de alegria, de energia e repletas daquilo que sou e daquilo que sinto como meu. 

3.2.15

Horas livres


Ligar os pensamentos aos passos que marco na estrada, é algo que gosto de dedicar às minhas horas livres. Por cada passo, surge uma ideia embrionária que deixo crescer ou não conforme me apeteça continuar o caminho. O ar frio de hoje aconchegou-me numa aparente contradição. Deixei que o paradoxo me guiasse e caminhei por entre casas vazias e ruas cheias de ninguém. Fotografar é para mim um vicio tão grande como os pensamentos que largo pelo passeio. Imagens reais e mentais cruzam-se num enredo que leio. Deixo que os objectos me intimidem e desmascaro-os trazendo-os guardados para depois os mostrar ao mundo. As minhas horas livres são aprisionadas neste mundo e nunca a privação de liberdade me pareceu tão bela.