Aquilo que me inspira, levo para casa.




16.8.16

Dos ferries e de outras recordações...



-          Uma
-          Duas
-          Três
-          Quatro
Era assim que eu passava as travessias do Rio Sado, entre Setúbal e Tróia, a bordo dos ferry boats - a contar o número de alforrecas que nadavam na água enquanto o meu pai me agarrava na camisola não fosse algum impulso mais forte me fazer resvalar para fora do barco. Eram dezenas as que nadavam de forma graciosa no mar ora verde ora azul, numa espécie de salpicos transparentes que pareciam concorrer com a espuma das ondas.

Perdi a conta das vezes que pisei o chão dos ferry boats durante a minha infância e adolescência. Eram eles que nos faziam chegar à praia onde nos esperavam dias repletos de mergulhos e de sol na pele. A travessia para o paraíso era feita dentro destes barcos de linhas rectas, de paredes ferrugentas e com portas que pareciam waffles. A contrastar com o seu aspecto rústico, eram entoadas gargalhadas sem idade enquanto os cabelos dançavam ao vento e as pessoas conversavam entre os carros que, juntinhos, não deixavam que se visse a cor do chão.  Naquela altura, em que o Expresso e o Rápido eram os reis do mar, a Tróia era vista como uma extensão da cidade que ocupa a margem Norte do rio Sado. Apresentava-se pacata, esquiva mas com um areal exuberante e cheia de recantos que guardavam histórias Foi lá que aprendi a nadar e a ter predilecção por praias de dunas de areia branca. Os aromas da minha infância têm a forma das plantas que nos davam as boas vindas quando chegávamos à praia e que teimavam em permanecer onde a areia escaldava.  

Hoje em dia a Tróia emancipou-se, tornou-se vaidosa e ganhou em qualidade e em infra-estruturas aquilo que, para muitos, perdeu em carisma e em identidade. Contínua bonita e orgulhosa dos seus grãos de areia que beijam o mar límpido numa comunhão que assombra. Os antigos edifícios deram lugar a novos e renovados espaços e os velhinhos ferries foram substituídos por barcos modernos, mais confortáveis e que enchem de um verde vivo a monocromia do rio.

Os antigos barcos jazem agora abandonados. Vê-los assim, com tão pouca dignidade, faz-me sentir uma espécie de mágoa, como se assistisse à destruição lenta do passado. Os barcos que albergaram tantas alegrias e risos estão, agora, à mercê da erosão, daquilo que o tempo lhes quiser dar. São, por estes dias, a metáfora de que tudo o que não tem uso pode ser substituído, abandonado e esquecido. Contudo, perto deles, ainda consigo ouvir os sons da praia, ainda me vejo de novo pequenina a olhar o mar com o meu pai por perto, ainda sinto os atropelos das recordações que os colocam em retratos do meu imaginário.   

São pedaços de ferro, é certo, mas encerram histórias e um legado de quem os conheceu a desbravar marés. Gostaria infinitamente mais de os saber a ter outras utilizações ou a ser demolidos sem afronta aquilo que foram ou ao ambiente.