::Photo credits:: pinterest
Existiam
tantos fatos de Carnaval naquela casa que os móveis que os guardavam se
queixavam de cansaço. A cómoda há muito que sofria de artroses, ao guarda-fatos
tinha sido diagnosticada uma escoliose e o camiseiro já havia confidenciado à
arca que os seus bicos de papagaio tinham começado a palrar mais forte. O que
começara por ser meia dúzia de vestimentas que faziam a alegria das crianças da
família, passou a ser um verdadeiro sustento e ocupação da avó Helena e
rapidamente os móveis se encheram para além do seu limite. Somente na época
festiva estes conheciam algum alívio ao serem despojados do seu conteúdo. Nessa
altura era ver os fatos espalhados pela casa, em cordas de roupa improvisadas
que, pregadas nas paredes da sala, faziam esta assoalhada parecer o centro de
um desfile de moda.
- Avozinha, posso dar o nome a este?
- perguntava Marta à sua avó Helena após ter descoberto um fato de designação
incógnita.
- Podes, mas vê lá o que é que
inventas desta vez! Tens de dar um nome bonito para as freguesas gostarem!
Marta
esfregava as suas mãozinhas e iniciava o ritual de baptismo da fatiota. Desta
vez era um vestido de cetim branco, ornamentado com galões de cor preta e
salpicados com lantejoulas de tons que oscilavam entre o dourado e o ocre. Ao
olhar-se ao espelho com o vestido pela sua frente, Marta sorriu e iniciou a
dança que sempre fazia para estimular a criatividade, imaginando-se vestida com
aquele tecido suave. De olhos fechados e fazendo piruetas, toda a casa se
tornava o palco do seu espectáculo onde, sem inibições, Marta manobrava o corpo
de forma a variar os movimentos ondulantes. A avó Helena continuava a coser em
frente da máquina de costura. A proximidade do Entrudo não permitia que o tempo
lhe passasse a perna e era importante estar atenta a todos os pormenores da
roupa. De um ano para o outro surgiam sempre bainhas descosidas, botões que
caíam, adornos que desapareciam. Era preciso consertar tudo minuciosamente para
que os fatos falassem com a voz do seu esplendor. Helena olhou mais uma vez
para Marta, que continuava no seu cerimonial, e sorriu perante as acrobacias da
neta que mais parecia um gato aos pinotes.
-
Ó avó! Tu achas que este fato me fica bem?
-
Está mas é quietinha que ainda o sujas. Claro que fica bem, contrasta com a tua
pele morena.
-
Também acho! Se calhar é com este que me vou mascarar este ano. Posso?
-
Não sei, Martinha! Se nenhuma freguesa o quiser levar podes vesti-lo mas se
alguma gostar dele tens de ter paciência e escolher outro.
O
habitual beicinho de Marta apareceu e a avó sorriu mais uma vez perante aquela
neta sempre tão diligente quanto caprichosa.
Marta
adorava a casa da avó. Talvez porque essa adoração começasse logo na própria
avó, que ela tanto admirava, ou talvez porque era a única casa que conhecia
onde o Carnaval existia o ano inteiro e onde ela poderia ser tantas outras
coisas para além de uma menina de 7 anos. A avó via naquela neta a lufada de
alegria de que necessitava para não se deixar absorver demasiado nas linhas e
agulhas que a toda a hora lhe ocupavam as mãos. Com aquela neta chegavam-lhe o
som, a vida e a luz que ficavam fora da casa expulsas pela misantropia de quase
80 anos de vida. Desde que o marido falecera, Helena havia encontrado na sua
máquina de costura a companheira de quase todas as horas do seu dia. Não
tivesse nascido Marta e ela continuaria a não saber dizer se a noite virara dia
ou se o dia escurecera para noite. A vida recomeçara quando aquela neta lhe
entrara pela casa a exigir comida e brincadeira a troco do sorriso mais genuíno
do mundo. Não sabia dizer desde quando costurava, pois parecia-lhe que
responder “desde sempre” seria exagerado mas também não encontrava melhor
resposta. Já os fatos sabiam dizer tudo sobre a dona das mãos que os criavam,
os alinhavavam, os cosiam, os lavavam e os tratavam com especial enlevo.
-
Já sei, avó!
-
O quê minha filha?
-
Que nome lhe hei-de dar! Não era isso que estávamos a fazer?
-
Era, era, pois com certeza! Então, diz lá!
-
Fantasia de neve!
-
Onde é que foste desencantar esse nome, Marta?
-
A lado nenhum avó, lembrei-me… só isso! Não gostas?
-
Não te sei dizer, acho que…sim! Sim, gosto! Bom, pelo menos é diferente. Estava
a ver que o ias chamar de fada-qualquer-coisa.
-
Eu não, avó! Fadas e princesas há muitas, mas a fantasia da neve só tu é que a
tens!
Marta
já balançava novamente cheia de orgulho nos seus movimentos. Aqueles momentos
de cumplicidade com a avó extasiavam-na. E enquanto esta procurava os óculos
para enfiar a linha na agulha, já Marta se imaginava numa montanha cheia de neve
qual ninfa a esvoaçar sobre um manto branco.
O
dia do Entrudo aproximava-se e já a casa se transformara por completo para
expor os fatos qual montra de loja de avenida principal. Os móveis vazios
aplaudiam perante os fatos expostos em cordas cobertas de cabides. Havia fatos
para todos os gostos: reis e rainhas; príncipes e princesas; fadas e elfos;
super-heróis e palhaços; noivas do Minho e varinas; bruxas e feiticeiros;
sevilhanas e chinesas; bailarinas e toureiros; cowboys e índios. A avó Helena
caminhava pela casa com a boca cheia dos alfinetes que serviriam para pregar as
etiquetas. Marta ajudava-a, escrevendo, nas etiquetas improvisadas, os nomes
dos fatos e o preço do aluguer diário. Também fora ela que organizara os fatos
por cores e tamanhos, tendo o cuidado de bem esconder o Fantasia de Neve para
que dificilmente alguém o levasse.
Na
véspera da sexta-feira de Carnaval a casa da avó encontrava-se repleta de
fregueses à procura do fato que melhor assentasse nas crianças da família.
Helena não tinha mãos a medir e a ajuda da pequena neta tornava-se fundamental
para conseguir atender todos, munida da melhor atenção e simpatia. Marta revelava-se
uma excelente relações-públicas e a sua espontaneidade não deixava que alguém
abandonasse aquela casa sem ir totalmente satisfeito. A avó dizia que ela iria
ter um trabalho na área da moda, tal era a facilidade com que indicava o fato
mais apropriado para determinada pessoa. No final do dia todos os fatos tinham
encontrado o corpo que trajariam nos dias de folia. Todos, excepto um. A
fantasia de neve continuava elegantemente pendurada aguardando pelo momento em
que seria retirada do cabide para conhecer o contacto com a pele de alguém.
Helena abanou a cabeça tentando imaginar o ardil que a neta concebera para conseguir
que ninguém levasse a sua fantasia preferida. Não restavam dúvidas que aquela
miúda lutaria pelos seus objectivos e a avaliar pela mostra, o sucesso era algo
fácil de se lhe agarrar à mão.
Sem comentários:
Enviar um comentário