-
Uma
-
Duas
-
Três
-
Quatro
…
Era assim que eu passava as
travessias do Rio Sado, entre Setúbal e Tróia, a bordo dos ferry boats - a contar
o número de alforrecas que nadavam na água enquanto o meu pai me agarrava na
camisola não fosse algum impulso mais forte me fazer resvalar para fora do
barco. Eram dezenas as que nadavam de forma graciosa no mar ora verde ora azul,
numa espécie de salpicos transparentes que pareciam concorrer com a espuma das
ondas.
Perdi a conta das vezes que pisei
o chão dos ferry boats durante a minha infância e adolescência. Eram eles que
nos faziam chegar à praia onde nos esperavam dias repletos de mergulhos e de
sol na pele. A travessia para o paraíso era feita dentro destes barcos de
linhas rectas, de paredes ferrugentas e com portas que pareciam waffles. A
contrastar com o seu aspecto rústico, eram entoadas gargalhadas sem idade enquanto
os cabelos dançavam ao vento e as pessoas conversavam entre os carros que,
juntinhos, não deixavam que se visse a cor do chão. Naquela altura, em que o Expresso e o Rápido
eram os reis do mar, a Tróia era vista como uma extensão da cidade que ocupa a
margem Norte do rio Sado. Apresentava-se pacata, esquiva mas com um areal
exuberante e cheia de recantos que guardavam histórias Foi lá que aprendi a
nadar e a ter predilecção por praias de dunas de areia branca. Os aromas da
minha infância têm a forma das plantas que nos davam as boas vindas quando
chegávamos à praia e que teimavam em permanecer onde a areia escaldava.
Hoje em dia a Tróia emancipou-se,
tornou-se vaidosa e ganhou em qualidade e em infra-estruturas aquilo que, para
muitos, perdeu em carisma e em identidade. Contínua bonita e orgulhosa dos seus
grãos de areia que beijam o mar límpido numa comunhão que assombra. Os antigos
edifícios deram lugar a novos e renovados espaços e os velhinhos ferries foram
substituídos por barcos modernos, mais confortáveis e que enchem de um verde
vivo a monocromia do rio.
Os antigos barcos jazem agora
abandonados. Vê-los assim, com tão pouca dignidade, faz-me sentir uma espécie
de mágoa, como se assistisse à destruição lenta do passado. Os barcos que
albergaram tantas alegrias e risos estão, agora, à mercê da erosão, daquilo que
o tempo lhes quiser dar. São, por estes dias, a metáfora de que tudo o que não
tem uso pode ser substituído, abandonado e esquecido. Contudo, perto deles,
ainda consigo ouvir os sons da praia, ainda me vejo de novo pequenina a olhar o
mar com o meu pai por perto, ainda sinto os atropelos das recordações que os
colocam em retratos do meu imaginário.
São pedaços de ferro, é certo,
mas encerram histórias e um legado de quem os conheceu a desbravar marés. Gostaria
infinitamente mais de os saber a ter outras utilizações ou a ser demolidos sem
afronta aquilo que foram ou ao ambiente.
Sem comentários:
Enviar um comentário