Depois das festas, restam os seus
despojos. Mas há dores que sobejam ainda os efeitos das festas se proclamam. Ao
longe, ainda se escutam os sons vindos da multidão que se empurra, ainda se
sente o cheiro das sardinhas que se assam para que seja cumprida a tradição, ainda se
sente o reboliço de uma cidade entusiasmada nas comemorações a um santo que é
padroeiro de uma cidade bonita mas incapaz de amparar todos os que nela vivem.
De perto, há dois corpos estáticos, cegos, surdos e indiferentes aos regozijos
da festa, virados para si mesmos porque fora deles só há o mundo que os abandonou.
Apenas de dentro conseguem retirar o muito pouco que a vida lhes dá. Do
lado de fora, as festas há muito que pertencem a outros. A todos aqueles para
quem o mundo, ainda que às avessas, avança na sua trajectória normal. A estes dois homens resta-lhes os corpos e os olhares
dos outros, quando alguém neles repara. Como o meu olhar. Aquele que me
fez trazê-los na memória. Não lhes falei, não lhes toquei, não os fiz perceber
que os vi (importar-se-iam?) mas não os esqueci. Trago-os relembrados no
conjunto dos meus despojos da festa, elevando-os à condição de paradigma das desigualdades
a que maldosamente nos habituamos, a puxarem-me de volta para a realidade que,
em muito, trespassa as coisas boas e bonitas, binómio em que habitualmente me
detenho fazendo-me esquecer que o mundo pode ser hediondo e de equilíbrio
frágil. O que eu vi foram dois seres drasticamente contrastantes do ambiente
que se vivia, o produto de uma cidade clivada para acolher duas realidades
paralelas, não deixando que a melhor delas se compadeça da outra. Tocou-me
imensamente aquelas pessoas das quais desconheço quase tudo excepto o que os factos
me permitiram ver. O corpo é mesmo o último reduto da vida, mesmo depois da
mente nos abandonar, de deixarmos de ser quem somos, de morrermos enquanto
personalidade, há um corpo que se tem de gerir e mesmo esse, com toda a sua
materialidade, consegue ser invisível aos outros.
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