Nós somos o que as memórias dizem de nós. Mas por
vezes as memórias emudecem e deixam em vácuo o espaço que antes cabia às
palavras. Sendo a memória o mais potente reservatório de nós mesmos -
posiciona-nos e orienta-nos, num processo de atribuição de significados -, o
seu declínio torna-nos cada vez mais elementares na forma de ser e de actuar,
reservando-nos um estado primitivo e um eu que mais não faz que somente
sobreviver. Esta condição fatalista resume-se a morrer antes de si mesmo. O
cérebro, essa complexidade de neurónios e de neurotransmissores que comandam o
corpo, o comportamento e a mente, é o espaço físico que permite que as memórias
se acumulem e se relacionem. Quando no interior deste invólucro tão especial, a
massa que o constitui definha, tudo aquilo que somos vai acompanhando esse
desaparecimento, restando-nos um corpo que vai continuando a reagir até ele
próprio sucumbir perante a falta e a qualidade das ordens cerebrais. Enquanto
tal não sucede, o corpo, apesar de existir, já não é habitado por ninguém para
além de um automatismo de acções e de memórias cada vez mais insípidas e distanciadas
da realidade prestes a acolher a sua extinção total. Com o passar do tempo, a
existência pessoal esvai-se mas mantém-se vivo o corpo que um dia nos revestiu,
corpo esse capaz de olhar mas incapaz de ver, capaz de ouvir mas inábil para processar
o que ouve, capaz de sentir mas totalmente inapto para compreender para além
dos sentimentos básicos do medo, da fúria ou da tristeza. O mundo passa a ser
um lugar em branco, sem qualquer possibilidade de ser colorido ou preenchido.
Lidei e lido com pessoas que me são próximas e que se viram envoltas na malha das demências, cujos mundos em branco se foram expandindo inexoravelmente e em que os familiares surgem como uma plateia que assiste inerte, sem nada conseguir fazer para que a doença progrida ao seu próprio ritmo. Sou por isso muito sensível a esta causa, sou uma aliada pela prevenção do mundo em branco, nutro uma infinita cumplicidade pelos cuidadores destas pessoas e um especial carinho e respeito por todos os que esquecem de si próprios antes do tempo.
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