Aquilo que me inspira, levo para casa.




7.6.17

De outros tempos


- “Pratos, copos, talheres, guardanapos, toalhas…” 

A lista ia sendo dita enquanto se ultimavam os afazeres para ir para a praia. A geleira cor de tijolo ia sendo preenchida com a comida acabada de fazer e com as bebidas que a acompanhariam. Panados de frango e salada russa com maionese caseira era, invariavelmente, o menu dos domingos de verão na Tróia. Para além da geleira outras malas se amontoavam com toalhas, rádio a pilhas, revistas e outras utilidades indispensáveis a um dia de sol. A colmatar a bagagem, seguia a sombrinha de cores garridas levada a tiracolo. 

 - “Bebidas, bronzeador, revistas…”

- “Sim, está tudo, podemos ir”. 

 A frase que, dita pela minha mãe, assinalava a ordem para fechar a porta e colocar no carro a carga de veraneio. A sentença que me liberava do confinamento do lar para ir ao encontro do mar e do vento libertador. 

Sempre conheci os meus pais a gostarem de praia, o calor dos seus dias livres era serenado pela ida à praia onde por entre banhos de mar, se sentavam ao sol enquanto ouviam os parodiantes de Lisboa e liam as novidades breves oferecidas pelas revistas. Havia vezes que o meu pai transportava com ele um livro. Lembro-me de ver “O Prémio” no fundo da mala da praia apesar de apostar que poucas linhas foram alvo da leitura do meu pai. 

As filas para os barcos eram por vezes enormes. Um amontoado de pessoas debatia-se por chegar o mais depressa possível junto do funcionário que aceitava os bilhetes rasgando-os e deixando que os seus despojos se espalhassem pelo ar. Por entre pisadelas e corpos demasiado próximos, avançávamos a um ritmo lento enquanto as mãos apertavam, assertivamente, os bilhetes para não os perder. Os dos meus pais eram pequenos rectângulos acartonados de cor verde água, o meu, maior, de papel mais fino e branco, denunciava a minha pouca idade. 

Enquanto atravessávamos o Sado no ferry boat ferrugento de cor branca, contávamos as alforrecas que adornavam o mar. Havia dias que a contagem ultrapassava as três dezenas, baliza esta que se associava à exclamação feita de entusiasmo:

 - “Tantas, pai!!!” 

A escolha pelo sítio onde ficar não nos roubava muito tempo. Na altura era comum ficar-se na pequena praia em frente ao cais e por isso o dia era passado a ver chegar e partir os barcos que transportavam pessoas e carros num vaivém que alegrava as gaivotas. 

Enquanto a minha mãe tirava da mala as toalhas e me ajudava com as roupas, o meu pai montava a sombrinha sob a qual nos protegeríamos do calor mais forte. Antes de aquecermos o corpo ao sol, inaugurávamos o dia com um mergulho no mar. O primeiro passo para a água era, sistematicamente, feito com cautela, prevendo a frieza da água. Os seguintes eram dados de forma ligeira embora cada um de nós tivesse o seu próprio ritmo. O meu pai era o primeiro a mergulhar, quase sempre num ímpeto para depois nadar durante algum tempo. Para ele a água estava sempre boa, mesmo que o seu corpo arrepiado parecesse acusar o contrário. Eu seguia-lhe os gestos, embora de forma mais lenta mas quase sempre deixando para trás a minha mãe que se manteve fiel à sua posição de retaguarda. Os momentos em que estávamos os três dentro de água acabavam por ser diminutos face ao tempo que demorávamos a consegui-lo. Ainda assim, aproveitávamos para mergulhar, nadar, saltar e deixar que a água nos contaminasse com a sua energia refrescante. 

Seguia-se o almoço cuidadosamente acondicionado. Iniciava-se a cerimónia da refeição distribuindo-se os pratos de plástico amarelo e as canecas azuis. Depois, esperavam-nos várias horas sem poder regressar ao mar, salvaguardando uma digestão sem sobressaltos. Era durante este tempo que nos dedicávamos a ler, a observar os outros e a ouvir o som roufenho do pequeno rádio a pilhas. 

 Já em pequena gostava da multiplicidade de cores e padrões que abundam nas praias. Uma espécie de vida paralela cheia de um entusiasmo alegórico. É como se na praia não valesse ficar zangado ou triste, porque tudo se ordena para a gloriosa manifestação de um dia feliz. Por isso guardo estes dias com especial saudade. Uma nostalgia doce e simultaneamente carregada de um simbolismo de perda. Não há passado recordado sem perdas mas a verdade é que mantenho o gosto pela praia e pela sua envolvente. Hoje em dia dispenso o piquenique tão a preceito de outros tempos, optando por uma versão alimentar mais minimalista, mas não em desmazelo. Contudo, mantenho as sequências de outrora como se de uma herança genética se tratasse. Preservo a necessidade de inaugurar a estada na praia com um banho rápido, de sentir a temperatura com que a água me espera e gosto de sentir o sol a queimar-me enquanto como antes de abraçar a serenidade da sombra. Muitos dos livros que li foram tragados durante as horas passadas na praia, uma verdadeira catarse contra a ociosidade (ainda que esta, em ambiente de estio, seja puramente saudável).

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