Aquilo que me inspira, levo para casa.




25.9.14

Do Alzheimer e de outras demências

Nós somos o que as memórias dizem de nós. Mas por vezes as memórias emudecem e deixam em vácuo o espaço que antes cabia às palavras. Sendo a memória o mais potente reservatório de nós mesmos - posiciona-nos e orienta-nos, num processo de atribuição de significados -, o seu declínio torna-nos cada vez mais elementares na forma de ser e de actuar, reservando-nos um estado primitivo e um eu que mais não faz que somente sobreviver. Esta condição fatalista resume-se a morrer antes de si mesmo. O cérebro, essa complexidade de neurónios e de neurotransmissores que comandam o corpo, o comportamento e a mente, é o espaço físico que permite que as memórias se acumulem e se relacionem. Quando no interior deste invólucro tão especial, a massa que o constitui definha, tudo aquilo que somos vai acompanhando esse desaparecimento, restando-nos um corpo que vai continuando a reagir até ele próprio sucumbir perante a falta e a qualidade das ordens cerebrais. Enquanto tal não sucede, o corpo, apesar de existir, já não é habitado por ninguém para além de um automatismo de acções e de memórias cada vez mais insípidas e distanciadas da realidade prestes a acolher a sua extinção total. Com o passar do tempo, a existência pessoal esvai-se mas mantém-se vivo o corpo que um dia nos revestiu, corpo esse capaz de olhar mas incapaz de ver, capaz de ouvir mas inábil para processar o que ouve, capaz de sentir mas totalmente inapto para compreender para além dos sentimentos básicos do medo, da fúria ou da tristeza. O mundo passa a ser um lugar em branco, sem qualquer possibilidade de ser colorido ou preenchido.

Lidei e lido com pessoas que me são próximas e que se viram envoltas na malha das demências, cujos mundos em branco se foram expandindo inexoravelmente e em que os familiares surgem como uma plateia que assiste inerte, sem nada conseguir fazer para que a doença progrida ao seu próprio ritmo. Sou por isso muito sensível a esta causa, sou uma aliada pela prevenção do mundo em branco, nutro uma infinita cumplicidade pelos cuidadores destas pessoas e um especial carinho e respeito por todos os que esquecem de si próprios antes do tempo. 

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