Aquilo que me inspira, levo para casa.




13.2.15

Carnaval

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Existiam tantos fatos de Carnaval naquela casa que os móveis que os guardavam se queixavam de cansaço. A cómoda há muito que sofria de artroses, ao guarda-fatos tinha sido diagnosticada uma escoliose e o camiseiro já havia confidenciado à arca que os seus bicos de papagaio tinham começado a palrar mais forte. O que começara por ser meia dúzia de vestimentas que faziam a alegria das crianças da família, passou a ser um verdadeiro sustento e ocupação da avó Helena e rapidamente os móveis se encheram para além do seu limite. Somente na época festiva estes conheciam algum alívio ao serem despojados do seu conteúdo. Nessa altura era ver os fatos espalhados pela casa, em cordas de roupa improvisadas que, pregadas nas paredes da sala, faziam esta assoalhada parecer o centro de um desfile de moda.
            - Avozinha, posso dar o nome a este? - perguntava Marta à sua avó Helena após ter descoberto um fato de designação incógnita. 
            - Podes, mas vê lá o que é que inventas desta vez! Tens de dar um nome bonito para as freguesas gostarem!

Marta esfregava as suas mãozinhas e iniciava o ritual de baptismo da fatiota. Desta vez era um vestido de cetim branco, ornamentado com galões de cor preta e salpicados com lantejoulas de tons que oscilavam entre o dourado e o ocre. Ao olhar-se ao espelho com o vestido pela sua frente, Marta sorriu e iniciou a dança que sempre fazia para estimular a criatividade, imaginando-se vestida com aquele tecido suave. De olhos fechados e fazendo piruetas, toda a casa se tornava o palco do seu espectáculo onde, sem inibições, Marta manobrava o corpo de forma a variar os movimentos ondulantes. A avó Helena continuava a coser em frente da máquina de costura. A proximidade do Entrudo não permitia que o tempo lhe passasse a perna e era importante estar atenta a todos os pormenores da roupa. De um ano para o outro surgiam sempre bainhas descosidas, botões que caíam, adornos que desapareciam. Era preciso consertar tudo minuciosamente para que os fatos falassem com a voz do seu esplendor. Helena olhou mais uma vez para Marta, que continuava no seu cerimonial, e sorriu perante as acrobacias da neta que mais parecia um gato aos pinotes.
- Ó avó! Tu achas que este fato me fica bem?
- Está mas é quietinha que ainda o sujas. Claro que fica bem, contrasta com a tua pele morena.
- Também acho! Se calhar é com este que me vou mascarar este ano. Posso?
- Não sei, Martinha! Se nenhuma freguesa o quiser levar podes vesti-lo mas se alguma gostar dele tens de ter paciência e escolher outro.

O habitual beicinho de Marta apareceu e a avó sorriu mais uma vez perante aquela neta sempre tão diligente quanto caprichosa.

Marta adorava a casa da avó. Talvez porque essa adoração começasse logo na própria avó, que ela tanto admirava, ou talvez porque era a única casa que conhecia onde o Carnaval existia o ano inteiro e onde ela poderia ser tantas outras coisas para além de uma menina de 7 anos. A avó via naquela neta a lufada de alegria de que necessitava para não se deixar absorver demasiado nas linhas e agulhas que a toda a hora lhe ocupavam as mãos. Com aquela neta chegavam-lhe o som, a vida e a luz que ficavam fora da casa expulsas pela misantropia de quase 80 anos de vida. Desde que o marido falecera, Helena havia encontrado na sua máquina de costura a companheira de quase todas as horas do seu dia. Não tivesse nascido Marta e ela continuaria a não saber dizer se a noite virara dia ou se o dia escurecera para noite. A vida recomeçara quando aquela neta lhe entrara pela casa a exigir comida e brincadeira a troco do sorriso mais genuíno do mundo. Não sabia dizer desde quando costurava, pois parecia-lhe que responder “desde sempre” seria exagerado mas também não encontrava melhor resposta. Já os fatos sabiam dizer tudo sobre a dona das mãos que os criavam, os alinhavavam, os cosiam, os lavavam e os tratavam com especial enlevo.
- Já sei, avó!
- O quê minha filha?
- Que nome lhe hei-de dar! Não era isso que estávamos a fazer?
- Era, era, pois com certeza! Então, diz lá!
- Fantasia de neve!
- Onde é que foste desencantar esse nome, Marta?
- A lado nenhum avó, lembrei-me… só isso! Não gostas?
- Não te sei dizer, acho que…sim! Sim, gosto! Bom, pelo menos é diferente. Estava a ver que o ias chamar de fada-qualquer-coisa.
- Eu não, avó! Fadas e princesas há muitas, mas a fantasia da neve só tu é que a tens!

Marta já balançava novamente cheia de orgulho nos seus movimentos. Aqueles momentos de cumplicidade com a avó extasiavam-na. E enquanto esta procurava os óculos para enfiar a linha na agulha, já Marta se imaginava numa montanha cheia de neve qual ninfa a esvoaçar sobre um manto branco.

O dia do Entrudo aproximava-se e já a casa se transformara por completo para expor os fatos qual montra de loja de avenida principal. Os móveis vazios aplaudiam perante os fatos expostos em cordas cobertas de cabides. Havia fatos para todos os gostos: reis e rainhas; príncipes e princesas; fadas e elfos; super-heróis e palhaços; noivas do Minho e varinas; bruxas e feiticeiros; sevilhanas e chinesas; bailarinas e toureiros; cowboys e índios. A avó Helena caminhava pela casa com a boca cheia dos alfinetes que serviriam para pregar as etiquetas. Marta ajudava-a, escrevendo, nas etiquetas improvisadas, os nomes dos fatos e o preço do aluguer diário. Também fora ela que organizara os fatos por cores e tamanhos, tendo o cuidado de bem esconder o Fantasia de Neve para que dificilmente alguém o levasse.


Na véspera da sexta-feira de Carnaval a casa da avó encontrava-se repleta de fregueses à procura do fato que melhor assentasse nas crianças da família. Helena não tinha mãos a medir e a ajuda da pequena neta tornava-se fundamental para conseguir atender todos, munida da melhor atenção e simpatia. Marta revelava-se uma excelente relações-públicas e a sua espontaneidade não deixava que alguém abandonasse aquela casa sem ir totalmente satisfeito. A avó dizia que ela iria ter um trabalho na área da moda, tal era a facilidade com que indicava o fato mais apropriado para determinada pessoa. No final do dia todos os fatos tinham encontrado o corpo que trajariam nos dias de folia. Todos, excepto um. A fantasia de neve continuava elegantemente pendurada aguardando pelo momento em que seria retirada do cabide para conhecer o contacto com a pele de alguém. Helena abanou a cabeça tentando imaginar o ardil que a neta concebera para conseguir que ninguém levasse a sua fantasia preferida. Não restavam dúvidas que aquela miúda lutaria pelos seus objectivos e a avaliar pela mostra, o sucesso era algo fácil de se lhe agarrar à mão.

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